sábado, 27 de fevereiro de 2010

As estações de um escritor


Alguns escritores possuem suas sazões; é isso mesmo que você acabou de ler, sazões. Porém, não se pode esquecer que há leitores que também leem sob uma perspectiva sazonal, seus olhos são sazonais. É no interior da incongruência entre esses momentos, do escritor e seu leitor, que se estabelece o conflito extrínseco ao texto entre essas duas figuras. De um lado, o escritor que quer se expressar de acordo com a estação em que se encontra, do outro, o leitor que exige do texto que seus frutos sejam os específicos de seu tempo.

Dessa maneira, percebe-se o poeta, por exemplo, envolto sob a neblina de um inverno congelante. Seu tom é pálido, pouco intenso, mas com muita densidade, algumas vezes, apenas frio, noutras, melancólico. Algumas imagens que lhe vêm à mente causam acidez, vontade de vômito, sofreguidão, outras o deixam introspectivo, sem sentimento do mundo, sua terra é ele e nada mais. Na outra extremidade está o leitor, vivendo o esplendor do mais puro verão. Seu olhar é solar, iluminador, buscador de belezas, cores, sabores, temperos tropicais... Sua leitura, ao se deparar com a gélida profundidade do texto, indispõe-se, detesta o que está diante de seus olhos. Assim diz ele: “Como assim? Eu, no verão do meu apaixonamento com a existência, exposto a uma alma tão pessimista? Não, isso jamais!” Ora, ele quer sair de si, ir de encontro às coisas, roubar-lhes um pouquinho daquilo que possuem de melhor, enquanto a leitura o coloca em frente ao espelho de seu próprio ser.

Doutro modo vive o escritor primaveril. Sua escrita é somente nascimento. Não aceita ideias preexistentes. Algumas são dadas à luz antes do tempo, sem que tenham passado pelo devido amadurecimento. Mas, são alegres, multicoloridas, com cheiro de novas. São largamente compartilhadas pelo público da mesma estação, o qual as aproveita para voar e dançar com o máximo de ligeireza. No entanto, quando tal texto se acha nas mãos do leitor invernal, causa forte indigestão. Não há nele a austeridade exigida por sua condição. É mundo demais para um coração que preza a solidão.

No ápice de tudo isso, o escritor do verão coloca a folha branca em sua mesa. Ele a vê como a terra, precisando ser iluminada pela luz solar – ele é o sol. Despeja sobre suas páginas uma intensidade quase instintiva. O leitor atento será capaz de sentir um cheiro de suor em cada palavra. No texto, o mundo parece uma grande conciliação entre amor e ódio, paz e guerra, prazer e tédio, harmonia e caos, solução e tensão, vida e morte... Todavia, para alguns leitores, sobretudo, os invernais, nada é detalhe e toda intensidade é mera superficialidade. A vontade de vômito retorna, pois não conseguem ruminar tanta grandeza. São seres setentrionais, quase polares, com nenhuma disposição para os carnavais dos trópicos.

Por fim, embora devessem ser escritores pessimistas, habitam o mundo os escritores da beleza outonal do fenecimento. São verdadeiros pintores das cores tristes, mas que fazem a alma do leitor viajar num profundo devaneio. Subitamente, seus olhos não se encontram na folha. Não são mais as palavras que completam as frases, e sim, a imaginação, o pensamento sem direção. O olhar se perde enquanto as coisas ao redor ficam turvas. O espaço se transforma em horizonte. É como se a alma caminhasse para ele. Os ouvidos se abrem para uma música longínqua, um sussurro que chama. O ar seco, as folhas secas ao chão, as árvores em letargia, o poente em várias avermelhadas, é como se tudo isso tivesse falado ao escritor, cada um com o poder de tocar o leitor. Nesse estado, quem escreve não quer conflitos, quer a serenidade. Quem espera protesto, murmurações, cinismo, sarcasmo, pouca profundidade, intensa densidade, rigor, e outras coisas do tipo, talvez não se sinta bem ao ler uma obra de outono.

No entanto, há escritores que não vivenciam qualquer sazonalidade. Alguns são polares, outros equatoriais, alguns vivem no subterrâneo, outros nas alturas. Não importa, cada um tem algo a dizer se souber o que quer e como fazê-lo (livremente). É por isso, penso eu, que escrever deve ser um respeito a si mesmo e ler deve ser respeitosamente a aceitação do outro, mesmo que para isso seja necessário o conflito. Afinal, sem umas boas briguinhas verbais a literatura seria muito chata.


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